Para todo profissional, seus instrumentos de trabalho são
objetos de adoração, de veneração. Da igual forma em que um bisturi representa
a habilidade de um cirurgião, a caneta para um professor, uma câmera ou um
microfone para um jornalista, e um martelo para um carpinteiro, as panelas são
de igual valor para um cozinheiro.
Durante muitos anos a cozinha na cultura da humanidade teve
papel contundente na simbologia da formação e na apresentação das classes
sociais e da própria conotação de ultimo rincão na estrutura física de um lar.
Cozinha sempre lembrada como local de escravos desde os
imemoriais tempos da Roma antiga ou Grécia chegando ao nosso conhecido período
colonial e aos nossos dias, gerou sempre o pertencimento do local onde se era e é gerado o fruto dos prazeres dos imperadores, senadores, reis e príncipes,
bárbaros, cristãos ou de qualquer outra religião, senhores de engenho e outros
abastados da monarquia ou república.
Preparar alimentos para a engorda dos que se banqueteiam sem
saber o quanto se cansa ou se dedica para que a mesa posta lhes ofereça prazer
e saciedade.
Atrelado a este conceito de servidão laboral, poucos os que
atingiram o glamour ou as graças destes glutões insaciáveis e se destacaram com
regalias e poderes nesta hierarquia, utilizando-se de ferro, bronze ou barro,
porcelana, vidro, madeira ou folhas, talheres de prata ou ágata, mas sempre
presentes as panelas.
Até nos contos de fadas, a beleza de uma linda donzela se
declinou a lavar panelas e o chão de uma velha cozinha. Tê-la nas mãos é sinal
de castigo, de humilhação, de fatal de destino social recluso nos fundos da casa.
Cinderelas brancas, negras ou mestiças, ajudantes camundongos, sempre o local
de submissão e de expurgo social, mas ainda o que prepara o banquete. Até mesmo
a abóbora que se faz vez de panela para camarões se transforma em carruagem
real, mas o sonho dura pouco e se transforma ao soar das horas.
E de nada adianta a evolução do homem e das mais modernas
tecnologias, a figura dela ainda assim se é retratada como o símbolo da
submissão, do xingamento, da humilhação pública. Quanto mais moderna, ..., se de
inox for, acústica fantástica em fundo triplo, de alumínio ficam na ala
destinadas aos percursionistas ritmistas tal qual numa bateria de escola de
samba. Seja ele, chicote rijo de colher
de pau ou de prata, fato é que a panela esta apanhando, esta nas mãos de seus
senhores e sendo espancada pública e vexativamente humilhada diante de todos, e
quanto mais às burras tem moedas, maior é o gosto em seu espancamento, pois o
poder ali se da com a demonstração de quem faz a sua escrava panela urrar mais
alto.
Filosofia barata, sonho, devaneio, ilusão. Mas a panela mais
uma vez na figura mimética de uma classe foi mártir da história, teve de
vulgarmente mostrar sua bunda nas janelas e ser chicoteada pelos seus senhores
e senhoras. Panela que na sua forma côncava remete ao aconchego de um colo materno,
na cavidade de um útero que gera, ou prepara o alimento que irá nutrir suas
crias foi colocada como o símbolo de escarnio e poder.
Sejam quais forem os seus serviços prestados, não importando
se por centenas de dias servistes para alimentar tais glutões, serás sempre
utilizada de maneira pejorativa e como estandarte do poder. Grite, urre, mas
demonstre com carinho que é forte e que não importa o quanto apanhes, não
importa o quanto chores não serás covarde de se retirar de cena. Apanhas hoje,
mas amanhã te imploram para voltar a fazer o que sabes fazer.
Queria ver se outro instrumento teria garra igual a tua. Se
em outra profissão um símbolo seria tão forte ao ponto de ser espancado ter voz
e atravessar milênios. A vocês, panelas, só mesmo quem convive sabe dar-lhes o valor e o
respeito merecido. Eles se esquecem de que se vocês estão vazias, ocas, podem
ser fatais, podem fazer até reis definharem e à cova deitar-se.